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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O que você quer ser quando crescer?



Quando voltava do trabalho naquele dia, resolvi parar na pracinha duas quadras antes de chegar em casa, me sentei em um dos bancos, que na minha infância e adolescência eram inteiros e fiquei a olhar duas crianças brincando na grama a poucos metros de mim, era uma menina de mais ou menos seis anos e o menino aparentava ter a mesma idade e se não o fosse era pouco mais, falavam sobre o que seriam quando crescessem o diálogo era o seguinte:
_ Meu pai é médico._Disse o menino rabiscando o espaço de terra com um graveto.
_O meu é mecânico.
_Você vai ser mecânica?
_Não, suja as unhas e as roupas e você?Vai ser médico?
_Não sei...
_Porque não sabe?
_Tenho medo de sangue.
_Eu não, até ajudo a minha fazer molho pardo.
Achei graça da comparação.
_Então vamos fazer o seguinte, você fica com a profissão do meu pai e eu com a do seu.
_Está bem, não me importo de sujar as unhas e as roupas.
_E eu não me importo de ver sangue.
Ficaram ali muito tempo, operando pobres besouros e formigas que na sua falta de sorte se tornavam pacientes daquela pequenina de cabelos ruivos e pele sardenta e o garotinho de pele morena e cabelos crespos que por sua vez se empenhava no concerto dos “carros”, na verdade frutinhas que caiam das árvores e ele as espetava com pedaços de paus dos lados que finfia serem rodas.
Tudo isso me fazia lembrar da minha velha infância, onde também tive um amigo, o Valtinho, eramos carne e unha como se diz, íamos juntos para escola, brincávamos juntos, brigávamos também, mas sempre estávamos um ao lado do outro, ele era magrelinho e de tão branco podia lhe ver as veias no corpo,ele tinha um dedo defeituoso o que lhe dera o apelido de “Dedo Podre”, o que o irritava ao extremo, acho que se tivéssemos crescido juntos teríamos nos casado, pois ele veio pra capital ainda criança, eu só o fiz depois de adulta e independente e me formara em pedagogia, mas nunca mais o vi, apenas me lembrei disso porque aquelas crianças brincando ali na grama haviam me trago aquelas recordações, ele sempre dizia que quando crescesse iria ser médico e eu nos meus sonhos de menina queria ser professora, talvez eu ainda o encontrasse em algum hospital e me serviria de seus préstimos profissionais, assim pensei antes de tomar o ônibus e voltar para casa, dei uma última olhada nas crianças que ainda brincavam absorvidas pelas suas profissões de mentirinha.
Lembro-me como hoje, me levantei e fui para o ponto, o ônibus estacionou e eu entrei, me sentei na última poltrona, não estava cheio, porém todos os passageiros estavam assentados, pouca conversa se ouvia, á minha frente uma senhora carregava uma criança de mais ou menos um ano que vez ou outra olhava para mim e sorria, e eu, por minha vez correspondia aquele sorriso doce e ingênuo.
Era sexta feira e a tarde estava linda para dar um passeio na praça ou tomar um sorvete, levar os filhos para passear, era isso que eu faria se os tivesse...
O ônibus parou e um homem branco entrou, de tão brando podia lhe ver as veias, me dera um arrepio de repente e eu não sabia porque, ele ficara em pé a duas poltronas de mim, parecia nervoso e vez ou outra tossia, quando alguém fez sinal para o motorista ele deu um passo para frente e gritou:
_Todo mundo parado!_Tirou debaixo da camisa presa á calça um revolver.
O pânico fora total, a senhora á minha frente protegeu o bebê abraçando-o.
_Isto é um assalto, se cooperarem ninguém sai machucado.
Fechei meus olhos pedindo á Deus que tudo desse certo e que saíssemos dali com vida, o homem tremia, nós tremíamos, o clima ali dentro era horrível.
_Por favor, deixem celulares, jóias e dinheiro no corredor.
As pessoas obedeciam, afinal mais lhes valia a vida do que aqueles objetos que poderiam ser comprados novamente.
_Meu Deus...
Olhei para a direção onde ele olhara preocupado.
_Droga...!A polícia.
Ele estava nervoso e parecia violento ao arrancar das mãos dos passageiros os pertences.
_Todo mundo no chão, agora.
Eu apenas olhei para a senhora com o bebê, ela segurava a criança fortemente contra o peito, antes de se deitar no chão sussurrou pra mim:
_Se acontecer alguma coisa comigo tenho endereço na agenda aqui em minha bolsa...
_Acalme-se senhora, nada irá acontecer , isso logo acabará e em breve estaremos em nossas casas aliviados.
Ela me sorriu se deitando no chão com o bebê.
_Você.
Eu já estava de joelhos no chão quando ele apontou para mim.
_Venha cá logo.
Eu obedeci, não queria provocar a ira de um assaltante armado.
_Você será meu escudo, a polícia não vai atirar em mim com você aqui.
Eu tremia ao sentir aqueles braços fortes ao redor do meu pescoço, mas estranho, eu tinha uma sensação de familiaridade, como se já os conhecesse, era um misto de medo e prazer, fechei os olhos tentando esquecer que eu estava ali.
_Droga!O ônibus está cercado.
Sai do meu devaneio com uma sacolejada, sendo arrastada para perto da janela, o clima começava a ficar tenso.
_Porque está fazendo tudo isso?
_O que?_Estava distraído olhando o movimento dos policiais do lado de fora.
_Porque está fazendo isso?
_Olha dona, não sei se vai servir de resposta para a senhora que parece ter uma vida boa, mas se tivesse em meu lugar e ouvisse o seu filho chorar pedindo leite e você não tivesse como comprar, faria o mesmo.
_Não seria mais fácil pedir?
Ele riu ironizando.
_Até parece que iriam dar algo para um homem sadio e de boa aparência.
_Você já tentou?
_Chega dona, não me enche com seu papo de crente, se quer me converter ta perdendo seu tempo eu já vi coisas demais para acreditar que as coisas vão mudar, você nunca deve ter entrado numa favela, não é?
_Não.
_Então fique calada e não me enche com esse seu papinho.
Um estrondo me fez ser arrastada para longe da janela com violência.
_Se continuarem atiro nela._Gritou para o policial que ameaçava se aproximar.
_Olha, vamos conversar, amigo...
_Não tem nada pra conversar se aproximar atiro nela.
Ele tremia mais ainda, o que deixava bem claro para mim que era iniciante.
Fechei meus olhos e me veio na mente a lembrança das crianças brincando na praça e do meu amigo Valtinho...Voltei a mim com um estrondo, e algo a me escorrer pela roupa, passei a mão, o líquido era viscoso, mas eu não sentia dor, senti apenas os braços se afrouxarem ao redor do meu pescoço e o escorregando até cair ao chão.
_Meu Deus!_Ajoelhei-me ao lado dele.
_Talvez seja melhor assim, dona.
_Você vai ficar bem, vão te levar para o hospital.
Ele sorriu.
_Eu quis ser médico um dia...
_E porque não o foi?
_Uma longa história..., olha se nas quebradas da vida conhecer uma professorinha dedicada, diga a ela que eu tentei.
Naquela hora meu mundo desabou, não podia ser coincidência aquela história, então me lembrei de olhar a mão dele e qual não foi minha surpresa ao ver o dedo defeituoso.
_Eu sou a professorinha..._Ele já não podia ouvir, era tarde demais.
Os policiais se aproximaram, eu estava em estado de choque olhando para o corpo estendido no chão, ouvia vozes pessoas rindo de felicidade, o bebê chorava, policiais correndo...E eu só tinha olhos para o corpo no chão, aquele homem ali era parte da minha história que tomara rumos diferentes, eu o desejei nas noites de solidão em meu quarto frio, esperei-o como se esperava um príncipe encantado, estive em seus braços por algumas horas e o perdi para sempre e naquele momento enquanto todos enxergavam um bandido, eu via um pobre homem marginalizado, sem fé e que não vivera o suficiente para ver os filhos crescerem e ensina-los as nossas leis, as leis da selva, onde o mais forte sobrepuja o mais fraco colocando de lado o ensinamento do Deus que nos criou, “Amai vós uns aos outros como eu vos amei”.
Ontem voltei á praça e qual não foi minha surpresa ao me deparar com as duas crianças sentadas novamente na grama, como me sentia triste me aproximei para falar com elas, me olharam sem medo com aqueles olhinhos ingênuos.
_Quer brincar com a gente? _A menina me convidou.
_Claro!_Eu tinha lágrimas nos olhos me lembrando do ocorrido ha um mês atrás.
_Estamos brincando de profissão._O garotinho mostrou-me o carrinho que trouxera de casa._Eu quero ser mecânico e a Nanda médica, e você? O que quer ser quando crescer?
Eu estava muito emocionada, me lembrando da cena do meu amigo caído, morto sem nenhuma chance de mudar o seu destino, vítima das políticas excludentes e da intolerância humana, enxuguei uma lágrima que corria e respondi.
_Eu quero ser criança.

RAQUEL LUIZA DA SILVA.

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