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segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Canção da Sereia.




Aquela noite na praia do Taboá seria trabalhosa e de agonia para seus moradores, a tempestade que desabara de repente causara prejuízos nas casas e afundara embarcações no mar, Maria de Jesus outrora enfrentava a ventania e se postara a beira-mar, agora não estava sozinha, outras a vieram acompanhar, algumas traziam no colo ou pela mão os filhos pequeninos que nada entendiam e alheios ás suas dores brincavam na areia. Maria de Jesus que ali chegara primeiro tinha expressado no rosto a dor da certeza de que a sua casa estaria vazia naquela e nas outras noites que viriam, apesar de o coração querer provar o contrário, deixara as crianças menores em casa, apenas Ramiro, o filho mais velho lhe seguira de longe, tivera medo que ela fizesse alguma loucura ao se deparar com o marido morto, como deviam estar todos da embarcação Estrela do Oriente que saíra àquela tarde.
Alguém se aproximou cobrindo-a com um velho xale, abraçando-a em seguida, como se pudesse com o gesto afastar o frio interior que a cobria o peito.
_Ele vai voltar, mãe.
Ela apenas voltou-lhe o rosto com os olhos marejados, tentou sorrir para retribuir o conforto, mas o que saiu foi algo dolorido, que nem de longe se assemelhava á um sorriso dando um tom mais triste ainda àquela face que não seria iluminada por um sorriso verdadeiro, talvez passaria a ser coberta por um negro véu de renda como faziam as viúvas daquelas paragens aos domingos nos cultos religiosos e que agora estavam ali, como abutres, em suas vestes negras amparando as suas novas companheiras de infortúnio que choravam e batiam no peito cientes do mal que se instalara em suas vidas.
_Vamos para casa mãe...
_Não, vou ficar.
_O mar está bravio e as ondas altas, ninguém entrará para resgata eles.
Aquela frase doeu-lhe o peito, ninguém mesmo se aventuraria a enfrentar aquelas ondas violentas que quebravam na praia com estrondo apavorante, o filho estava coberto de razão.
_Mãe... Mãe... O Pedrinho ta lá em casa querendo peito, ele ta com fome...
_O seu pai está no mar, no meio das ondas. _A lágrima corria fazendo caminhos tortuosos no rosto envelhecido pelo sol, pelo vento, pelo frio... E agora pela dor.
_O pai vai não vai voltar, mãe.
_Não vai, eu sei, você não ouve?
_Ouvir o que, mãe?
_O canto... _Os olhos vagavam nas ondas que se tornavam mais violentas.
_Que canto?_O rapaz fixou as vistas na direção em que ela indicara, tinha a testa franzida e os olhos cheios de lágrimas de comoção.
_ “Vem pescador... Vem pescador... Repousas nos meus braços, braços de amor, meu beijo é doce, doce é meu amor, na terra andavas, aqui flutuarás, nos braços das ondas, nos braços do mar. Vem pescador... Vem pescador...”._Cantava como se não houvesse mais ninguém ali na praia a ouvi-la.
_Que música é essa, mãe?Eu não a ouço.
_Iemanjá...
_Eu ouço apenas o som do mar. _Sacudia-a nervosamente tentando retira-la daquele estado de transe.
_Vem pescador... Vem pescador... _Continuava.
_O barco, o barco!_João Capão, um dos pescadores que se aventurara na busca saiu correndo no meio das ondas.
O rapaz Olhou para a mãe a procura de uma reação ainda que parecida com alegria, em vão, pois o olhar continuava perdido, agora naquele ponto marrom que era jogado de um lado para outro pelas ondas raivosas e parecia uma embarcação fantasma.
_José... José... _ A pobre da Maria Madalena Correu para o mar, mas foi segura pelos homens que queriam evitar mais uma baixa na praia.
Gritos e gemidos se misturavam com os uivos do vento, eram esposas, filhos, mães, amigas, amantes que lotavam a praia á espera dos seus mortos.
_Eles podem estar vivos!_Caio, um jovem pescador que voltara cedo para casa gritara, tentando acalmar os corações doloridos.
_Eu sei que vosmicê quer apenas ajudar meu garoto, mas só está piorando, essas pessoas que aqui estão sabem muito bem, que ninguém sobreviveria á uma tempestade dessas. _Era Romão, velho pescador que dizia tocando os ombros do jovem.
As mulheres agora estavam mais á beira da praia, menos a mulher que primeiro chegara e agora era amparada pelo filho.
_Vamos Maria de Jesus!_A mulher a segurara pelo braço.
_Não Carmem, eu não vou, eu ainda a ouço, não quero estar perto das almas que ela levou.
_Mas eles podem estar vivos!
_Não estão...
Carmen a soltou e foi em direção ás outras que esperançosas se amontoavam na orla do mar.
_Eu vou mãe, fica aqui. _Olhou-a compassível.
_Vai, eu fico aqui.
As ondas já acalmavam e o vento que outrora era bravio agora era quase que uma brisa, os uivos agora não eram do vento, mas de dor, porque os primeiros corpos eram retirados das águas.
_Não... Não..., me leva Tãozinho, me leva...
A mulher era Gracinha casada de pouco com o jovem Tãozinho, homem valente e bonito que também estava naquela embarcação e que o mar acabava de devolver sem vida.
_Tem outro ali...
As vozes se misturavam e homens corriam para o mar, Maria de Jesus, a mulher que chegara primeiro, continuava ali, já não tinha mais lágrimas haviam secado, agora era a alma que transbordava em medo e dor a espera de que gritassem o nome do marido, a cada novo corpo que surgia, fechava os olhos e comprimia os lábios.
Aos poucos a praia estava cheia de corpos estendidos na areia, eram os maridos adorados, os filhos amados, os irmãos unidos, os amantes desejados, os melhores amigos...
Todos passavam por Maria de Jesus, estranhando-lhe a ausência de lágrimas, o líquido salgado que deveria correr-lhe pela face, assim pensavam, pois não podias ver a sua alma que se desfazia em frangalhos pela dor.
_Não encontraram o pai, mãe.
_Eu sei.
_Ele pode estar vivo!
Ela afagou-lhe os cabelos negros.
_Vamos para casa.
_Mas mãe...!
_Deixem que os outros chorem seus mortos, ao menos têm os corpos para se debruçarem e chorarem, eu, nem isso tenho, ela o levou.
O rapaz olhou para o mar e depois para a mãe, pensou em dizer a ela que ficaria, mas mudou de idéia vendo-a se afastar, seguiram calados, ela apenas vez ou outra ajeitava o xale que escorregava pelos ombros magros.
O casebre onde moravam estava iluminado assim como os outros naquela praia, entraram, as crianças mais novas olhavam assustadas a espera de uma palavra qualquer.
_Mãe, cadê o pai?
Ela não tinha mais lágrimas, olhou para o pequeno Augusto de cinco anos que nada entendi e depois para filha de doze anos que segurava no colo o recém nascido, presente último do marido, única recordação das noites de prazeres em que se amaram ouvindo o barulho e o cheiro de mar, mesmo mar que o levara para longe.
A menina olhou para o irmão mais velho que chegara com a mãe.
_Ramires, cadê o pai?
_Ele não vem mais Neiva.
_Diz que é mentira mãe, por favor, diz!
A mulher apenas deu as costas e foi para o quarto, onde as lembranças afloravam, a cama, as roupas de pescador, pobres e cheias de remendos, o cachimbo, a rede que pendurava na varanda... Como desejou ter lágrimas naquele momento, para aliviar a dor interior.
Podia ouvir o lamento das mulheres na praia, lavou o rosto, os braços e os pés na bacia que lhe servia de lavatório, penteou os cabelos negros que lhe caiam pelas escadeiras, vestiu seu vestido novo que o marido lhe dera de presente no seu aniversário e o qual nunca usara por falta de ocasião, era simples de tecido barato, mas para quem não ganhava presentes todo dia se tornava maravilhoso ante os olhos, se perfumou com águas de laranjeira e aguardou que todos em casa dormissem e que as vozes na praia se silenciassem e na volta da madrugada saiu, o vento a balançar-lhe os cabelos soltos e sacudir-lhe as vestes, levava na mão flores que colhera no jardim, os pequenos pés deixavam rastros na areia fofa, seguiu até a orla do mar, onde ondas calmas vinham beijar-lhe os pés.
Ajoelhou-se, fez um longa oração, se levantou e foi até onde a água cobria lhe a cintura, deixou que elas levassem as flores.
_Ele tinha mesmo que ir, você me deu ele, agora levou, não te tenho raiva mãe dos mares, mas te invejo porque terás contigo o meu Manoel,homem mais bonito da praia, fará dele seu marido..._Engoliu as lágrimas que não vieram._...Não quisestes nem o corpo me devolver como o fizestes com os outros, me devolva apenas as lágrimas para que eu possa aliviar a minha dor._Sentiu o líquido quente e salgado a lhe banhar o rosto.
Saiu do mar e voltou para casa, os filhos dormiam, melhor assim, entrou para o quarto e acendeu o lampião, ficou a olhar a foto do esposo na parede, acendeu uma vela pela sua alma, sentiu um frio a gelar-lhe o corpo, foi até a janela que estava aberta, olhou demoradamente para o mar, sobre uma gigantesca onda pareceu que alguém lhe acenava, um homem, Manoel! Correu para a porta indo em direção á águas, não havia ondas, não havia homem, não havia Manoel, voltou para casa, fechou a janela, apagou o lampião e adormeceu, lá fora,apenas o cenário de destruição emoldurava o mar que calmo vinha com suas ondas lamber a praia, tocada pelo vento uma doce canção se ouvia,enquanto ao longe uma embarcação coberta pela névoa deslizava por sobre as águas, apenas podia se ver a linda mulher sentada sobre a proa a pentear os cabelos, a lhe admirar a beleza, vários homens se ajoelhavam aos seus pés, ela penteava os longos cabelos cor de noite que se misturavam com as águas...
“Vem pescador... Vem pescador...Repousas nos meus braços, braços de amor, meu beijo é doce, doce é meu amor, na terra andavas, aqui flutuarás,nos braços das ondas, nos braços do mar...Vem pescador...Vem pescador...”


Raquel Luiza da Silva

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