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quinta-feira, 23 de abril de 2009

Voltar a ser menino.


Cansado dos meus livros de filosofia, tirei os óculos dos olhos, o mundo estava opaco, aliás o era sempre que olhava sem aquelas lentes cristalinas de fibra de vidro suspensas por um aro fino metálico, disgner italiano,esteticamente falando era de bom gosto, coisa que eu tinha ao extremo.
A chuva começara e a única distração que eu tinha naquele momento era olhar para a ponta do pé e encenar um teatro com meus dedos, fazia isso quando era criança e ficava doente, minha mãe me proibia de sair de casa, ai ficava imaginando mundos fantásticos cheios de monstros, castelos e donzelas para salvar, donzelas...Eu as salvava e no final recebia em troca figurinhas, porque naquela época não sabia o quão gostoso era receber beijos.
Sempre que chovia me dava uma saudade desvairada daquela minha infância inocente, de correr atrás das meninas e assusta-las com insetos, de roubar doce na janela da dona Araci, só pra vê-la gritar:
_Pede moleque, num roba não!
A gente se asentava cansado na calçada comendo aquele doce feito de rapadura e amendoim, o pé-de-moleque, e se debulhava na risada ao lembrarmos da dona Araci.
Pois é, o tempo passa, os meus amigos cresceram...O Tatu morreu tentando atravessar o deserto do México, sonhava em ser artista nos Estados Unidos, o Chiquinho se casou e virou pastor, a Larissa a “menina dos meus olhos”se tornou prostituta de luxo, a Catarina ficou louca depois que os pais morreram num acidente de carro, o Dinei foi preso e morreu em uma rebelião no ano passado, o Neném deu o golpe do baú numa coroa e vive no Caribe fugindo dos filhos dela, a Vanessa se tornara cantora de rock a última vez que a vi foi num show, mas ela estava tão noiada que me confundiu com Tom Cruise, e eu...Bem, eu estou agora deitado no meu sofá imaginando qual peça encenarei com meus dedos, na verdade horas de folga como estas são difíceis na minha corrida vida de empresário e produtor artístico, acho que eu fugi a estatística e driblei a sorte que não fora lá tão maravilhosa e piedosa com meus amigos.
O que eu enceno?Uma peça de Shakespeare ou uma do Grupo Galpão?
Dúvida cruel, enquanto isso meus dedos de unhas bem feitas e leve camada de base cuidados pelas delicadas mãos da minha habilidosa manicura Maria Rita estão quietos a espera do momento para entrarem em cena, terei que admitir, não tenho mais minha criatividade infantil que viajava para mundo distantes e vivia aventuras fantásticas, aliás eu envelheci, talvez os meus amigos que tiveram uma vida simples ou de infortúnio a viveram e vivem melhor que eu, pois fizeram o que tiveram vontade de fazer, eu porém, fiz a faculdade que meus pais queriam, vesti as roupas que eles queriam, namorei com as pessoas que eles queriam, comi as comidas que eles queriam, mas quando eles queriam me casar com uma granfina cheia de manias e chiliques eu parei, olhei para eles e disse:
_Chega!
Me lembro como hoje da cara desolada da minha mãe buscando respostas no olhar do meu pai quer me metralhava com um ódio incondicional, ai era o início da minha vida adulta e o fim da minha dependência moral e psíquica, e como toda liberdade tem seu preço fui morar com minha avó, já que meu pai não me queria ver nem pintado de ouro.Talvez lá naquela modesta casa no meio das lembranças da minha infância eu teria mesmo vivido, pois trabalhava de office-boy e terminava minha faculdade, mas como todo ser humano fui movido pela ambição e acreditem, depois de muito lutar, mudando de empregos e estudando muito passei a viver justamente a vida que os meus pais almejavam para mim, aquela vida que outrora me sufocava com seu glamour e requinte é justamente a que eu vivo agora, cercado de falsos amigos e do luxo supérfluo.
Meus dedos ainda estão à espera do teatro, mas as lembranças passam a me assaltar, minha infância ficara tão distante...E me vem á mente apenas os flashs das minhas noitadas, das comemorações requintadas e da minha pobre avó naquela modesta casa, de repente me vem uma vergonha e me afundo no sofá fofo. Nunca sentira aquilo, parecia que “Papai do céu”, estava a me ver e a apontar seu dedo dizendo:
_Menino mal!
A chuva! Agora eu descobrira para que servia a chuva, para se ficar em casa e meditar e rever e ver os erros, meu Deus! Minha vó!Como será que ela ta com o céu desabando dessa maneira?
Meus dedos...Que se dane o teatro de dedos, minha vó deve estar com frio e pode haver uma goteira enorme sobre a cama dela!
Me levanto, o que devo vestir?
Que se dane meu bom gosto, minha vó deve estar com frio, vou de pijama mesmo, saio descalço, abro a garagem e dentro de alguns instantes estou na avenida principal rumo ao bairro humilde onde mora a matrona da minha família que tem apenas por companhia o gordo gato Bichano.
Estaciono o carro, uma fraca luz vem de dentro da casa, bato á porta, ela pergunta quem é, deve estar sentada em sua poltrona antiga e cheia de almofadas.
_Sou eu vò, o Alexandre!
_Entra menino, senão você pega um resfriado.
Obedeci e como eu imaginara ela estava sentada em sua poltrona, vestia seu camisolão florido e tinha os pés calçados com grossas meias de tricô que ela mesma fizera.
_O que a senhora faz ainda acordada?
_Eu estava esperando por você, por isso deixei a porta aberta.
_Mas eu não disse que vinha!
_Mas meu coração sabia, eu esperava que a chuva viesse forte para revê-lo, pois sempre se preocupava comigo quando chovia assim , ia ao meu quarto ver se tudo estava bem, e como hoje está esse temporal, eu o esperei vim me ver.
Naquele momento eu me senti um nada na frente daquela franzina velhinha de olhar puro que me fitava com ternura, tive apenas uma atitude, sentei-me no carpete e pousei minha cabeça no colo dela.
_Vó, me conta uma história?
_Claro, meu menino!Que tal a dos músicos de Bremen?
_É a minha prefira.
_Eu sei._Sorriu._Nunca me esqueço das coisas que você gosta.
Meu coração doeu naquele momento eu a havia esquecido e não a via a quase oito anos, morando na mesma cidade.
_Era uma vez...
Meus olhos se encheram de lágrimas, senti saudades dos meus pais, de correr nu no jardim de casa, de rolar na lama e ver minha mãe xingando, de sentir o cheiro de terra molhada, de ser livre e viver sem regras, de ser o menino Alexandre aquele que soltava pipa e subia em muros que não perdia uma briga e deitava na grama sonhando com o primeiro beijo...Na verdade eu só queria nessa hora voltar a ser menino e não é que fiz! Fechei os olhos e a voz da minha vó me transportava para aquela saudosa época e se algum fotógrafo me visse daquela maneira receberia um prêmio expondo minha fragilidade em todos os meios de comunicação, mas eu não me importava e era meu aquele momento...
_Alexandre...Alexandre...
Acordei, o corpo todo doía, olhei ao redor tentando descobrir onde estava, foi ai que me lembrei da noite maravilhosa que tive.
_O café está pronto.
Olhei o relógio na parede.
_Obrigado vó, mas tenho que ir, estou atrasado!_Beijei-a e ia saindo quando me lembrei._Quero que a senhora vá morar comigo.
Ela me sorriu docemente.
_Não posso.
_Porque não?
_Porque se eu fosse, iria se tornar rotina na sua vida, você iria me ver todos dias e iria se esquecer de como é bom sentir saudade e eu não o iria esperar a cada tempestade, não, prefiro ficar aqui, porque o que seria do ser humano sem as lembranças?
Apenas lhe sorri e voltei para a minha rotina, vida corrida e cheia de badalações a espera da próxima tempestade para voltar a ser criança , aliás, o que seria do ser humano sem as lembranças?

RAQUEL LUIZA DA SILVA.

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